quarta-feira, 27 de junho de 2018

No outro lado do espelho



Existem fantasmas que nunca viste nos meus olhos…

É possível que a luz da lua os tenha iluminado.

Nem sequer reparaste como branquearam os meus cabelos,
como os riscos na pele me vincam as feições
ou como já não se nota bem o contorno dos meus lábios.

Não percebes?! sinto o chão a ceder e em cada passo
a estrada já não contempla o infinito… apenas uma luz intensa que me convida...

Ainda te recordas dos sorrisos mudos e dos olhares cúmplices
que trocávamos quando tudo estava dito sem uma única palavra?

Deliro. Olho o espelho e procuro-te. Ainda me vês?

Procuro-te para que me reconheças,
mesmo que não seja eu, me compreendas confidente
e sejas mensageiro na comunhão do silêncio que nos habita 
Talvez os meus olhos estejam turvos e  hoje  não te reconheça.

Por vezes ausento-me de mim,  sou outra realidade...
volto a ser menina, volto a ser irrequieta, volto a ser aquilo que nunca pensei ser,
pois nunca quis ser coisa alguma (estranho… não me lembro de querer ser,
nem mais nem menos do que sou, ou seja, nada…)
como chocolates, ainda sonho, ainda penso...
mas também me entedio, me aborreço e me desespero
e ao espelho apenas me vejo baça, gasta e farta…
tentarei de novo amanhã, uma e outra vez
e tantas quantas forem precisas. Talvez te encontre...

Ainda me procuro no outro lado do espelho!





terça-feira, 19 de junho de 2018

Fluxograma

A montante
não trago planícies nem vales ou montes
verdes pastos ou frondosas árvores
nem nascentes ou regatos
nem animais ferozes ou exóticas aves
nem extensos mares nem aventura
tão pouco, nome simples ou brasão comprado
fortuna ou fardo antigo ou ainda,
feição bela ou graça alguma.

A jusante
nada trago em mão, apenas olhos
sopesados de tanto quanto podem abarcar
ver, tocar, ler
vasto horizonte cruzado
- linhas rectas, perpendiculares, circulares -
fundindo mar e terra, ponto de fuga
forjando sentidos
tábua-palco, cortina, luzes, acção.

Acolho em areia fina,
leito enviesado em sobressalto - estreita ampulheta!
seiva e sumo de vida a escorrer a fio,
desaguando em única vez.



sexta-feira, 15 de junho de 2018

De tarde



Nêsperas e laranjas caem dos ramos prenhes
e  a maresia invade as narinas saudosas do sal,
bordadas,  no ainda pungente verde,  rubras papoilas
com salpicos de brancos sanganhos e madressilvas entre cardos.
Ao vento abrem-se asas de andorinhas e o canto das gaivotas
exalam perfumes doces de magnólias e acácias em flor. 

(fixam-se sorrisos nos rostos felizes
interpretando pedras desconhecidas num mapa desdobrado
na pausa duma mesa com um copo de vinho à saúde da vida
e à alegria que patrocina… prendem-se memórias para lembrar)

Estendo os olhos e deito-os no mar azul-céu.

O sol amorosamente beija o mar que sem pudor sorve-lhe a vida …
nele morre e ressuscita
não sem antes oferecer-lhe um crepúsculo de rosáceas
e os olhos deitados acompanham as ondas
e vão longe a acompanhar o barco
que teima transpor o horizonte a caminho do oriente…


Vestiram-se de purpura os passeios da cidade
e ainda tanto para ler...